quarta-feira, 2 de julho de 2014

Os cristãos e o condado

No universo d'O Senhor dos Anéis, criado por J.R.R. Tolkien, existem vários seres fictícios. Nesse mundo, uma das raças mais queridas e peculiares são os hobbits. Essas criaturas baixinhas e de pés peludos habitam um local paradisíaco: O Condado. Nessa terra verde e fértil, os hobbits vivem isolados do resto do mundo. Eles são felizes, auto-suficientes, todos se conhecem, tudo é bonito. O único problema é que eles não fazem a menor ideia do que acontece do lado de fora. Suas vidas são tão fechadas, que pode haver um inferno no resto da Terra, e eles dificilmente saberão. Os pequeninos me lembram de um povo fora da ficção: os cristãos.
Vivi a maior parte da minha vida entre evangélicos neopentecostais. Durante muito tempo aquela era a única realidade que eu conhecia, e parecia estar tudo ótimo. Assim como os hobbits, os cristãos não fazem a menor ideia de como funciona o mundo fora de sua redoma. Em suas igrejas, esse isolamento é celebrado. Tudo gira em torno de fazer com que todos se sintam melhores consigo mesmos. As músicas repetitivas te põem pra cima, e depois vem um pastor gritar frases de efeito, do tipo das que são atribuídas ao Bob Marley desde os tempo de Orkut. Entre os dois momentos há a arrecadação dos dízimos e ofertas, claro. Porque quem dá, vai receber bem mais em retorno (parece algo que você ouviria de um esquema de pirâmide). E por fim, o grand finale: o apelo. Esse é a oportunidade para entrar no clube! Você precisa apenas repetir algumas palavras e deixar seu nome e telefone (afinal, Deus pode querer te ligar 5 vezes por semana pra perguntar quando você vai voltar pra igreja). Esse é o auge do culto, o momento em que os membros mais antigos do clube se alegram pelos novos "irmãos". "Acabamos de salvar vidas com nossas palavrinhas mágicas! Como somos bons! Como somos importantes!"

"Ah, Lucas, mas isso é só uma parte muito pequena". Se você pensa assim, parabéns: é do tipo de cristão que mais me irrita. Vamos chamá-los de Cristãos Hipsters. Os cristãos hipsters estão acima de todos os outros. Tudo o que eles fazem é cool! Suas músicas são tão diferentes! Bandas sertanejo-gospel, mpb-gospel, funk-gospel, boy-band-gospel, uau! Nossos artistas preferidos nem falam a palavra "deus" 15 vezes a cada frase. Eles saem da igreja e vão para um pub gospel! Como são legais! Suas igrejas fazem festas, acampamentos, shows! Tudo do mais descolado! Sem falar nas festas pra solteiros. Esse é um espetáculo à parte: centenas de "irmãos" e "irmãs", com um peso nas costas de quem precisa conhecer o amor de sua vida nessa noite, sentados timidamente, sem nem ao menos conversarem. E quando a festa acaba, a resposta é óbvia: não foi da vontade de Deus que eu conhecesse minha futura esposa hoje (nada a ver com o fato de você não ter falado com ninguém). Os cristãos hipsters também se encaixam muito bem nessa frase do filme Matrix: "A maior parte dessas pessoas não está pronta para acordar, e muitos são tão inertes, tão dependentes do sistema, que vão lutar para protege-lo".

Os cristãos adoram tanto seu ego, que fazem de tudo para acariciá-lo. Fui de uma igreja que estava literalmente em frente à maior favela da cidade, e insistia em mandar "missões" para países africanos. Como diz o personagem Trevor, no jogo GTA V: "A tortura é para o torturador. Você tortura pela diversão. É uma forma inútil de se conseguir informações". Da mesma maneira, as pregações são para quem prega, as orações para quem ora, as missões para os missionários. Eles se ajuntam em grupos animados para pregarem em praça pública, para se sentirem muito bem consigo mesmos. Estão fora do templo, mas ainda totalmente fechados dentro de barreiras invisíveis (para eles, porque todo mundo vê). 

Nem tudo está perdido. Na história, alguns hobbits conseguiram se libertar da inércia e do conforto do Condado. Existem Bilbos e Frodos, que perceberam que há um mundo lá fora, e que existem vários outros tipos de pessoas, outras linguagens, outros problemas. O calor do Condado não significa nada quando se começa a pensar para fora. Esses bravos heróis comuns aprenderam a respeitar, a amar, a viver - de verdade.

2 comentários:

  1. Oi Lucas! Como sempre surpreendendo! Como você sabe (ou não) sou apaixonada por Tolkien, então ler esse texto foi questão obrigatória, e você só disse o que já tinha percebido (bom saber que tem gente inconformada junto comigo!). Quando saí do universo neopentecostal e passei a ver como realmente era lá dentro em paralelo ao mundo exterior (chamaremos de Terra Média, rs) fiquei muito decepcionada com a alienação que muitos vivem. Não que eu cuspa no prato que comi, esse Condado foi ótimo para que eu me envolvesse e conhecesse o Criador, mas como leite e não como alimento sólido... aquele que é pregado no Novo Testamento.
    Enfim, estamos juntos na luta de conhecer a Deus mais e mais... E na luta de sair da caixinha quando necessário para nos aperfeiçoarmos no Senhor.

    #tamojunto

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    1. Que bom que você gostou e se identificou! É bom saber que a gente cresce, muda, endoida e continua tendo o apoio das pessoas legais que estavam conosco antes! E claro que eu sabia que você é fã! hahauha

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